Revista Barril, 2016

 

O sentido e o Homem torto por Diego Pinheiro

revista Barril

Crítica Sobre Homem Torto, de Eduardo Fukushima (SP), desenvolvida a partir da CRÍTICA IMEDIATA, proposta pela Revista ANTRO POSITIVO, para a cobertura do IC – Encontro de Artes 2016.

Em 2009, quando eu era um calouro do curso de direção teatral na Escola de Teatro da UFBA, fui ver uma série de performances na Escola de Dança, da mesma universidade. Dentre muitas das ações performáticas, acabei ficando vidrado numa “coreografia” na qual o dançarino ficava durante mais ou menos 30min pulando num pequeno pula-pula. Os pulos, ora muito altos, ora bem encurtados, tinham me hipnotizado. Algo muito além das interpretações e decodificações tinha me consumido. Me interessei pela performance a ponto de ir conversar com o dançarino e fazer algumas perguntas – que eu não me lembro –, e ele, com uma jactância, um misto de Gerald Thomas com Rogério Skylab, disse: “Besteira. Eu só queria me movimentar”.

Não sou um entendido em dança, mas sempre me pareceu que a dança contemporânea, enquanto área de experimentação estética, era um espaço pronto para ser o grande traidor de qualquer convenção absoluta. Obviamente, como qualquer outra iniciativa estética que busca pelo novo, a dança contemporânea também é um espaço passível de canonizações, de modo que podemos ouvir se isso, ou aquilo, é contemporâneo ou não. Mas há um aspecto nessa área que sempre me interessou.

A obra de Eduardo Fukushima, que sustenta em seu nome a síntese estético-discursiva, Homem Torto, sustenta uma das maiores provocações que a Dança Contemporânea nos oferta. Tal qual o “pula-pula”, mas com o bônus de um corpo que vibra todas as suas complexidades, há uma espécie de circunscrição, uma lupa sobre uma homeopática e periódica manifestação que transcende a qualidade física e ou orgânica na performance de Eduardo. Sobretudo, excede o entendimento simbólico como estamos acostumados a nos posicionar em arte. Seria, pois, uma “estética da vazante”, do refluxo.

Há o pensamento acadêmico de que as obras que lidam com as redundâncias optam por este excesso para atingir um esvaziamento. Diriam os acadêmicos: “esvaziar o sentido através de recursividades”. Assim se fala sobre os absurdistas, em especial os dramaturgos absurdistas. Existe nisso tudo um grande equívoco estético, filosófico inclusive. Ora, um Beckett entende o encargo filosófico que é a execução do movimento contrário, a vazante. Realizar o movimento contrário seria usar o código, devolvendo-o à extensão dos excessos, o sentido. Não há como esvaziar sentidos, mas sim o símbolo e seus significados. Vomitando-os. Estar vazio dos significados, ou seja, agenciar um esvaziamento simbólico, é transcender o símbolo, verticalizar até chegar no campo dos excessos.

Por essa via, o sentido nunca é vazio, nunca é inerte e nunca será indolente. É o espaço da superabundância de relações. Via contrária das leituras, das interpretações e da decodificação do expectante. A linguagem tem dessas, ao mesmo tempo que é a areia movediça para todos aqueles que se fascinam pela performatividade nua e crua; o sentido, é o caminho para o sentido.

“Assim vi a passagem do Homem Torto, um corpo vazante, vomitando “o torto”, um mesmo código que, uma vez esgarçado, me leva para outras paragens sem perdê-lo de vista.”

Para Fukushima, há transcendência simbólica no “vergar-se”, “entortar-se”, que se apresenta num corpo aparentemente frágil/vigoroso/entorpecido/ágil/frenético/lento, e nos lança uma gama de outras repercussões. Em contraponto à explicação do projeto, em minha crítica imediata disse que não é só o corpo frágil que é aparente, mas tudo aquilo que se performa em Homem Torto. Retificaria dizendo que a questão não é o “aparente”, mas sim o enredamento, a complexidade de cada uma dessas qualidades. A superabundância que se produz a partir dos movimentos em repetição.

A circunscrição, organizada por duas ações, ir e vir, responsáveis técnicas do espaçamento da performance, emoldura essa manifestação íntima reverberada em movimentos recursivos por Fukushima, a base de uma música incidente e irruptiva que me faz lembrar de algumas iniciativas do Louis Andriessen. Essa vazante, esse vômito lançado em movimentos, se torna a performance de um corpo que recebe e continua recebendo muitas coisas.

 Quando Fukushima para em minha frente, estabelecendo assim um contato visual comigo, há ali um vácuo, espaço de múltiplas relações e momento de fomentação da própria performance, consequentemente, fomentação de minha própria expectação. É difícil para mim, enquanto crítico, dizer, clarear o que ali passou. Eduardo diria, então, que é um corpo, “uma dança que passa” aos meus olhos; assim, simplesmente e inexoravelmente abstruso.

 Assim vi a passagem do Homem Torto, um corpo vazante, vomitando “o torto”, um mesmo código que, uma vez esgarçado, me leva para outras paragens sem perdê-lo de vista. Foi uma interessante experiência, diga-se de “passagem”, performar minha visão ali, e confirmar que a visão de uma plateia imersa na penumbra de um teatro, também pode ser justificada de maneira estética. Sobretudo, o corpo em Homem Torto me diz que “há muito mais coisas dentro de um símbolo do que supõe nossa vã semiologia.”

 

Rebate à crítica por Eduardo Fukushima

Revista Barril

Fico feliz que conseguiu visualizar outros sentidos que vão além da semiótica ou de símbolos, que estou consciente que a performance sugere. Enxergo em seu texto um sentido inominável sobre o Homem Torto. E isso me mais feliz ainda.

Tive muitas dúvidas ao intitular esse trabalho como Homem torto pelo simples fato de ser um nome muito concreto e que carrega uma ideia clara de um conceito em relação aos movimentos tortos que estava trabalhando. No entanto, resolvi persistir nessa por também gostar de reconhecer o conceito na ação ou conseguir enxergar uma proposta clara onde o corpo se resolve e proporciona diferentes direcionamentos ao olhar e às possíveis leituras.

Sempre busco sentidos para cada gesto que realizo, uns sentidos são mais racionais ou por imagens e outros são puramente corporais (onde a sabedoria do corpo como um todo se manifesta e as palavras não dão conta). Homem Torto são vários homens em um, é um corpo em constante mutação. Sobreponho imagens e movimentos em frações de segundos, por isso acredito que pode gerar uma bagunça na percepção, onde um sentido fixo não permanece e ao mesmo tempo não possui nenhum sentido escondido por traz. Amo a dança, pois é de sua natureza a abstração e não precisamos agregar muitos sentidos para ela ter sentido, saca?  Quem constrói o sentido é cada espectador, e isso já é a natureza da dança.

Ao mesmo tempo, comparo a criação de performance como a criação de um texto, onde escolhemos as palavras e o modo de distribui-las. O Vocabulário do Homem Torto é diferente do de Como Superar o Grande Cansaço? E assim por diante.

Gosto de apresentar um vocabulário de movimento que se repete e que durante a performance as pessoas vão se familiarizando com eles, reconhecendo-os e tomando-os pra si, como num discurso, um ato de fala. Mas ao mesmo tempo o movimento já carrega um sentido próprio onde as palavras não dão conta, embora proporcionem um exercício interessante de percepção e leitura.

Acho que o grande lance do homem torto são as milhares de imagens sobrepostas que apresento em um constante fluxo rápido. Enxergo um vômito de gestos também, e gosto que no final sugiro um apagamento desse

vômito através de uma corrida concreta para trás, como se tudo aquilo ou todo aquele esforço atrás não importasse de nada, não tem mais sentido em continuar.

O legal da arte é que brincamos com os sentidos sem criar um sentido claro e definido, como a vida é!

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