2021 cantos | outros festival de artes

O vídeo dança Cantos em parceria com August Severin, estreia dia 18 de março de 2021 https://www.outros.art/estreias

cantos https://www.outros.art/cantos

Sobre Cantos por Ruy Filho

pássaros sob pele

por ruy filho

Um gesto. E nele, um corpo que surge, sugere e afirma existir. Mas de qual existência se trata? E quem se é e se afirma ao dançar? Se as respostas podem levar aos mesmos argumentos quais estamos acostumados, Cantos, por sua vez, não precisa estar limitado a ser uma coreografia pela qual Eduardo conduz August. No intercâmbio mediado por telas, nas distâncias entre os dois, suas presenças foram organizadas por outra possibilidade de encontro: estão juntos, sim, mas naquilo que lhes orienta uma perspectiva sobre algo. Então olhar a esse algo é parte essencial. Por isso, o que a obra abriga é tanto mais do que somente a dança. Esta existe como matéria fílmica, entrada e saída a um estado intuitivo entre os artistas, de modo a fazer das imagens o convite para que a percebamos pinturas de instantes. Um após o outro, os momentos conduzem o observador a  experiência igualmente física junto aquele na tela. Então, em certo sentido, dançamos ao assistir.

Seus gestos, para além de serem movimentos, atribuem novas qualidades ao próprio corpo simultaneamente ao acontecimento. São inesperados e não excessivamente explicativos. E como todo gesto, em verdade, os de August também pressupõem um não-gesto, aquele abandonado ou recusado, para, ao fim, presentificar uma expectativa sobre o porvir. Por elaborarem a imagem pelo gesto, então,  os artistas organizam outras subjetividades conduzindo ao desvelamento biopolítico daquele que ali está. Todo corpo é em si narrativo, e isso forte. Portanto, não se trata de uma criação entre dois artistas, e sim da integração em busca da composição de algo maior do que eles mesmos. 

Delicada e densa, a obra surge como interferência ao real oferecendo pela tela outra convivência com o tempo. Nessa sutileza, a hipnótica particularidade do vocabulário gestual de August discorre também sobre a virtualidade das partes de quem somos diante o arcabouço imagético limitado pelo qual nos apresentamos ao Outro. E surge acontecimento natural/cultural, em seu enigma e inevitabilidade, sem que seja possível destituir-lhe qualquer um desses aspectos. Por isso o biopolítico aqui se faz especialmente na afirmação de uma humanidade em igual potência de sugestão aos seres não humanos. Se os animais podem se limitar ao reconhecimento por seus sons, o sujeito precisa dar ao corpo algum contexto de realidade para se diferenciar. E em August, a realidade é a soma dos gestos e sua singularidade.

A imagem se transforma. O corpo é reativo. A câmera se aproxima. Aquele do outro lado parece querer superar as superfícies do bidimensional, a própria e a da cultura, para invadir o real sendo exatamente apenas isso: real. Aquele, aquela, ou melhor, quem se é… Um corpo tela mediado pelo fora, agora reativado e expandido. Um corpo imagem pelo qual o domínio do próprio sentido destitui as interpretações simplistas, reducionistas, conclusivas e confirma outra possibilidade de presença. Corpo editado, coreografado a partir do diálogo com o externo, com o olhar que soma a si a potência de uma presença única, pois humanamente poética e poética por ser humana.

Assim, a performance de fato requer dois para se valer acontecimento. Canta o canto do existir e faz do espaço o canto íntimo. Mais do que uma necessidade técnica, pede olhos emprestados ao corpo para apurar gestos e sentidos. E nessa coreoedição, Eduardo supera o instrumental técnico para trazer de forma surpreendente também seu vocabulário. O delicado e pessoal, como em muitos de seus espetáculos, não refuta o impacto manipulando o tempo enquanto linguagem determinante à manifestação da imagem. Diante a obra, a respiração precisa ser outra. E existir junto a ela é, por alguns minutos, diferente do que se espera. Habita-se o sublime, como este merece ser, sem nem mesmo estarmos conscientes disso. 

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